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22 outubro 2017

Mérito


Ouvi o Mário C. Cortela contando uma história de um monge que distribuindo balas às crianças que o ouviam perguntou se elas queriam que as distribuísse à maneira de Deus ou dos homens. As crianças preferiram à maneira de Deus. Assim o monge começou a distribuí-las em quantidades aleatórias a cada uma que se apresentava. Admiradas, acharam que Deus havia feito de uma maneira injusta. Contestado, o monge ensinou que o trabalho de tornar aquilo justo seria delas, redistribuindo e repartindo igualmente entre elas. A parábola de Jesus sobre o dono da vinha que pagou os trabalhadores igualmente para diferentes números de horas trabalhadas expressa a mesmo modo de justiça divina.
A lógica do equilíbrio justo é humana e temporal, contida no mundo limitado de nossos egos materialistas. Não admitimos pelo conceito egoísta do TER. Dentro de nossos egos não concebemos esse conceito do desequilíbrio como forma de distribuição. É o cerne da questão do mérito. Ao mesmo tempo achamos que quando somos favorecidos ou não em algo, trata-se de justiça feita pelos nossos méritos, seja quais forem: esforço, inteligência, rapidez, força, e por aí vai.
Mérito vem do latim meritu, significando merecer, obter. Algo que torna alguém merecedor de prêmio ou castigo.
Não consideramos a aleatoriedade do nascer, como, quando, onde, quem, o que nascemos, dos acasos no desenrolar cotidiano da vida, enfim, na sorte da localidade no espaço-tempo da manifestação de nossa alma e corpo.  Como se pudéssemos escolher sobre tudo o que se passa conosco e fora de nós. Pura sorte.
Assim considerando o mérito não passa de uma desculpa para se aproveitar dessa sorte em detrimento alheio. Temos ao longo dos tempos humanos demonstrado, hora mais, hora menos, nossa perversa capacidade de subjugar os que não tem tanta sorte, pelo critério do mérito. Criamos toda espécie de preconceitos para nos estabelecer como superiores e aproveitar disso para um melhor conforto, como se o universo não nos desse a abundância necessária para todos. Usamos esse critério para avaliar de quem e do que cuidamos. Privilegiamos usando esse critério fazendo exatamente o que as crianças das balas questionaram. Continuamos a fazer como os trabalhadores da vinha. Evoluímos? Pra Buda, o único mérito possível é o da compaixão e do cuidar. Do mundo e dos outros. E me parece que para Cristo, também. Acho que meritocracia não foi o que ensinaram. Precisamos de um olhar divino para enxergar.

A seguir replico um texto de Luiz Nassif, muito pertinente.

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a) A meritocracia propõe construir uma ordem social baseada nas diferenças de predicados pessoais (habilidade, conhecimento, competência, etc.) e não em valores sociais universais (direito à vida, justiça, liberdade, solidariedade, etc.). Então, uma sociedade meritocrática pode atentar contra estes valores, ou pode obstruir o acesso de muitos a direitos fundamentais.

b) A meritocracia exacerba o individualismo e a intolerância social, supervalorizando o sucesso e estigmatizando o fracasso, bem como atribuindo exclusivamente ao indivíduo e às suas valências as responsabilidades por seus sucessos e fracassos.

c) A meritocracia esvazia o espaço público, o espaço de construção social das ordens coletivas, e tende a desprezar a atividade política, transformando-a em uma espécie de excrescência disfuncional da sociedade, uma atividade sem legitimidade para a criação destas ordens coletivas. Supondo uma sociedade isenta de jogos de interesse e de ambiguidades de valor, prevê uma ordem social que siga apenas a racionalidade técnica do merecimento e do desempenho, e não a racionalidade política das disputas, das conversações, das negociações, dos acordos, das coalisões e/ou das concertações, algo improvável em uma sociedade democrática e pluralista.

d) A meritocracia esconde, por trás de uma aparente e aceitável “ética do merecimento”, uma perversa “ética do desempenho”. Numa sociedade de condições desiguais, pautada por lógicas mercantis e formada por pessoas que tem não só características diferentes, mas também condições diversas, merecimento e desempenho podem tomar rumos muito distantes. O Mário Quintana merecia estar na ABL, mas não teve desempenho para tal. O Paulo Coelho, o Sarney e o Roberto Marinho estão (ou estiveram) lá, embora muitos achem que não merecessem. O Quintana, pelo imenso valor literário que tem, não merecia ter morrido pobre nem ter tido que morar de favor em um hotel em Porto Alegre, mas quem amealhou fortuna com a literatura foi o Coelho. Um tem inegável valor literário, outro tem desempenho de mercado. O José, aquele menino nota 10 na escola que mora embaixo de uma ponte da BR 116 (tema de reportagem da ZH) merece ser médico, sua sonhada profissão, mas provavelmente não o será, pois não terá condições para isto (rezo para estar errado neste caso). Na música popular nem é preciso exemplificar, a distância entre merecimento e desempenho de mercado é abismal. Então, neste mudo em que vivemos, valor e resultado, merecimento e desempenho nem sempre caminham juntos, e talvez raramente convirjam.
Mas a meritocracia exige medidas, e o merecimento, que é um juízo de valor subjetivo, não pode ser medido; portanto, o que se mede é o desempenho supondo-se que ele seja um indicador do merecimento, o que está longe de ser. Desta forma, no mundo da meritocracia – que mais deveria se chamar “desempenhocracia” - se confunde merecimento com desempenho, com larga vantagem para este último como medida de mérito.

e) A meritocracia escamoteia as reais operações de poder. Como avaliação e desempenho são cruciais na meritocracia, pois dão acesso a certas posições de poder e a recursos, tanto os indicadores de avaliação como os meios que levam a bons desempenhos são moldados por relações de poder; e o são decisivamente. Seria ingênuo supor o contrário. Assim, os critérios de avaliação que ranqueiam os cursos de pós-graduação no país são pautados pelas correntes mais poderosas do meio acadêmico e científico; bons desempenhos no mercado literário são produzidos não só por uma boa literatura, mas por grandes investimentos em marketing; grandes sucessos no meio musical são conseguidos, dentre outras formas, “promovendo” as músicas nas rádios e em programas de televisão, e assim por diante. Os poderes econômico e político, não raras vezes, estão por trás dos critérios avaliativos e dos “bons” desempenhos.
Critérios avaliativos e medidas de desempenho são moldáveis conforme os interesses dominantes, e os interesses são a razão de ser das operações de poder; que por sua vez, são a matéria prima de toda a atividade política. Então, por trás da cortina de fumaça da meritocracia repousa toda a estrutura de poder da sociedade.
Até aí tudo bem, isso ocorre na maioria dos sistemas políticos, econômicos e sociais. O problema é que, sob o manto da suposta “objetividade” dos critérios de avaliação e desempenho, a meritocracia esconde estas relações de poder, sugerindo uma sociedade tecnicamente organizada e isenta da ingerência política. Nada mais ilusório e nada mais perigoso, pois a pior política é aquela que despolitiza, e o pior poder, o mais difícil de enfrentar e de combater, é aquele que nega a si mesmo, que se oculta para não ser visto.

e) A meritocracia é a única ideologia que institui a desigualdade social com fundamentos “racionais”, e legitima pela razão toda a forma de dominação (talvez a mais insidiosa forma de legitimação da modernidade). A dominação e o poder ganham roupagens racionais, fundamentos científicos e bases de conhecimento, o que dá a eles uma aparente naturalidade e inquestionabilidade: é como se dominados e dominadores concordassem racionalmente sobre os termos da dominação.

f) A meritocracia substitui a racionalidade baseada nos valores, nos fins, pela racionalidade instrumental, baseada na adequação dos meios aos resultados esperados. Para a meritocracia não vale a pena ser o Quintana, não é racional, embora seus poemas fossem a própria exacerbação de si, de sua substância, de seus valores artísticos. Vale mais a pena ser o Paulo Coelho, a E.L. James, e fazer uma literatura calibrada para vender. Da mesma forma, muitos pais acham mais racional escolher a escola dos seus filhos não pelos fundamentos de conhecimento e valores que ela contém, mas pelo índice de aprovação no vestibular que ela apresenta. Estudantes geralmente não estudam para aprender, estudam para passar em provas. Cursos de pós-graduação e professores universitários não produzem conhecimentos e publicam artigos e livros para fazerem a diferença no mundo, para terem um significado na pesquisa e na vida intelectual do país, mas sim para engrossarem o seu Lattes e para ficarem bem ranqueados na CAPES e no CNPq.
A meritocracia exige uma complexa rede de avaliações objetivas para distribuir e justificar as pessoas nas diferentes posições de autoridade e poder na sociedade, e estas avaliações funcionam como guiões para as decisões e ações humanas. Assim, em uma sociedade meritocrática, a racionalidade dirige a ação para a escolha dos meios necessários para se ter um bom desempenho nestes processos avaliativos, ao invés de dirigi-la para valores, princípios ou convicções pessoais e sociais.

g) Por fim, a meritocracia dilui toda a subjetividade e complexidade humana na ilusória e reducionista objetividade dos resultados e do desempenho. O verso “cada um de nós é um universo” do Raul Seixas – pérola da concepção subjetiva e complexa do humano - é uma verdadeira aberração para a meritocracia: para ela, cada um de nós é apenas um ponto em uma escala de valor, e a posição e o valor que cada um ocupa nesta escala depende de processos objetivos de avaliação. A posição e o valor de uma obra literária se mede pelo número de exemplares vendidos, de um aluno pela nota na prova, de uma escola pelo ranking no Ideb, de uma pessoa pelo sucesso profissional, pelo contracheque, de um curso de pós-graduação pela nota da CAPES, e assim por diante. Embora a natureza humana seja subjetiva e complexa e suas interações sociais sejam intersubjetivas, na meritocracia não há espaço para a subjetividade nem para a complexidade e, sendo assim, lamentavelmente, há muito pouco espaço para o próprio ser humano. Desta forma, a meritocracia destrói o espaço do humano na sociedade.

Enfim, a meritocracia é um dos fundamentos de ordenamento social mais reacionários que existe, com potencial para produzir verdadeiros abismos sociais e humanos.

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